Às vezes penso que tudo poderia ser diferente do que vivemos hoje. Poderia ser tão mais simples. Tenho saudades do tempo em que só havia árvores, pessoas e um firmamento. Longe da poluição nossa de cada dia, do cheiro podre das propagandas, da frieza mecânica, das prisões de rotina, de toda a maquiagem cancerígena e das mensagens que circulam tão inúteis que mais confundem ao invés de informar. Mas não cuspirei no prato que como, pois bem sei que sou uma mutação constante e que o erro é o mau uso da matéria e o abandono da alma. Mas eu sei do perigo que é viver neste palco, sendo malabarista de mundos paralelos, sendo carne e alma.
Sim, tenho saudades de quando todos falavam com a vida, de quando éramos realmente reflexos da natureza divina. Hoje o que mais há são sombras imperfeitas, aberrações do espírito. Não quero ser pessimista ou radical, mas não consigo aceitar essa programação, esse ópio demoníaco. Somos bombardeados a todo instante por letreiros, propagandas, mensagens e símbolos que não expressam nada além da futilidade da massa materialista inebriante. Tudo isso sendo armazenado e acomodado em nossos cérebros, causando um verdadeiro engarrafamento de ideias, mensagens e sugestões. Não somos suicidas neste palco de massacres. Também não posso culpar ninguém de carrasco. Já nascemos condenados a uma programação, regras, dogmas e outro tanto de lixo inútil — se pelo menos fosse um lixo reciclável...
Às vezes sinto-me como um estrangeiro em uma terra distante, mas vou seguindo bravamente enveredando-me entre flores e bestas, sabendo separar o joio do trigo. Carrego comigo apenas uma peneira e vou peneirando tudo que vou absorvendo. É... Mas não foi fácil conseguir tal peneira, principalmente porque ela estava comigo o tempo todo. É difícil alcançarmos com as mãos as asas que estão atrofiadas em nossas costas. E muito mais difícil se torna quando crescemos adestrados pelo sistema que nos ensina que não podemos voar. Para conseguir enxergar minha peneira e tocar minhas asas foram necessárias diversas coisas. Contei com ajuda de importantíssimos fatores, entre eles a quebra de diversos tabus herdados e ditados pelos que estão no suposto comando. No palácio dos Egos é rei quem tem o maior rei na barriga, assim infinitamente, um devorando o outro na dança antropofágica da ignorância. Quebrar os tabus também não foi fácil. Quem disse que viver é fácil?
Realmente viver é fácil, isto quando se consegue a graça de se estar vivo, pois estar vivo é estar consciente de sua própria vida. Um robô não vive, mas sim segue um programa. Uma sociedade ventríloqua manipula ilusões, e agarrados às ilusões vão os bonecos atuando no teatro de marionetes. Eis o décimo quinto arcano do tarô. Lamentável realidade desarmônica... Porém mais lamentável ainda é estar ciente de que os próprios manipuladores são fantoches de uma força manipuladora ainda maior. Guias cegos em um tiroteio de ilusões.
O câncer social corre solto na carne abundante daqueles que são lançados ao mundo. E comer a carne é o de menos, o perigoso é o câncer de almas. O mais impressionante é que para combater este câncer, os supostos guias — cancerosos, diga-se de passagem — saem bombardeando os seres afetados com uma vasta gama de drogas, entorpecendo e não curando, maquiando o corpo morto, perfumando a carne podre. E como se fosse pouco, ainda existem as prostitutas espirituais, os lobos disfarçados de cordeiros e os mercadores que tentam comercializar o Eterno.
Agora pergunto: Será a vida um campo de batalhas? Seria algo como a bela porcaria militar que empurra garotos para morrerem como palhaços fardados por uma estúpida bandeira sem sentido e hipócrita? Não, Deus não seria tão cruel. O homem sim... Já se foi o tempo do ditador espiritual dos antigos textos, do ser vingador e egoísta das fábulas religiosas e seu exército de oprimidos. Não vamos fazer da Força Criadora um boneco em um trono, esta é a pior blasfêmia que podemos vomitar. Agora, da criatura já não posso dizer nada... Mas, estamos aqui para aprendermos, para evoluirmos. Mesmo percebendo que tantos evoluem em suas prisões doutrinárias... Só que temos que arrumar um modo de pescar, pois peixes não caem do céu direto para as nossas frigideiras. Tão pouco vai haver uma chuva de pão — ao menos que um padeiro excêntrico frete um avião para fazer uma ridícula propaganda do seu estabelecimento. Devemos plantar nosso próprio trigo. Como conseguir a vara e os grãos? Ora, você não pode ter tudo nas mãos. Se temos estas nossas ferramentas em pares é para que uma auxilie a outra. Assim é como o resto das coisas, pois a Natureza é perfeita.
Nós somos templos repletos de luz. Porque deixar que algo encubra nossa visão para que não percebamos a claridade? A peneira é para peneirar o que presta do que não presta e não para encobrir o sol da verdade. Não somos máquinas programáveis, tão pouco peças em um tabuleiro macabro,muito embora possa parecer esta a realidade. Nascemos imersos na lama, mas somos livres para sairmos quando bem entendermos. Deus nos honrou com a liberdade. Agora, enxergar essa liberdade, ai já são outros quinhentos... Geralmente parece mais fácil continuar no programa, muito mais cômodo e agradável, tendo em vista os riscos da libertação. É muita coisa posto em jogo, certo? Errado! Apenas ilusões... A verdade é universal, não pertence a nenhum dos lados, mas sim a todos. Um emprego, uma posição social, um título, uma marca? Ego engolindo ego. Irmão matando irmão. Falam tanto da bíblia e esquecem da metáfora de Caim e Abel. O que importa se o que você come é vegetal ou animal?
Para o caminho iniciático, aquele do buscador que pretende conhecer a si mesmo, são necessárias poucas coisas, sendo a principal a vontade. Basta um impulso para deslizar uma pequena bola de neve e transformá-la em uma terrível avalanche. Basta um querer. Sempre lembrando que sonhar é irmã de agir. Havendo um caminho e um horizonte existe o progresso, pois sempre após um horizonte irá haver outro. Mas, é claro, para tal aventura é necessária a coragem, a audácia de arriscar todo o seu suposto ouro.
Respirando fundo e se impulsionando para os confins do abismo do teu mais secreto ser encontrarás a coragem necessária. Tal impulso não é nada mais do que um suicídio para muitos, mas quem não arrisca morre em dúvida. Se você sobreviver ao devorador abismo, àquela conhecida mansão dos mortos, terá coragem o suficiente para encarar o espelho que também encontrarás nas perigosas trevas de tua alma. É, mas antes também terás que achar teus óculos ou retirar a venda com que te presentearam no jardim de infância. Aí sim, para conseguir a peneira vai ser mais fácil, assim como tocar suas asas atrofiadas e tentar achar um bom fisioterapeuta para elas. É aquela velha e remoída história do Templo de Delfos...
A receita é bem simples: uma viagem de ida e volta para o inferno, um par de óculos (serve um colírio), um espelho qualquer (pode ser o do banheiro) e uma peneira para separar o que presta e o que não presta para você. Ah! Claro, e um caminho...